Acusado de tráfico de escravos, preso e depois absolvido, José Gonçalves da Silva não se fez de rogado: durante 13 anos reuniu artigos de jornais, cartas, discursos de deputados, documentos oficiais e mandou-os imprimir, em 1864, na tipografia da Universidade de Coimbra, onde seu filho estudava Direito.

José Gonçalves da Silva à Nação Brasileira” é o título do seu libelo, hoje o único documento conhecido de autoria de um acusado de tráfico de escravos. Nele, o autor denuncia o que chama de “grande injustiça”, reivindicando indenização pelos danos sofridos com o processo, que teria provocado um “descomunal abalo” em sua fortuna.

Quando desembarcou no Brasil, em 1813, ele tinha entre 11 e 12 anos. Fazia parte de uma geração de meninos portugueses que vinham tentar a sorte no Rio de Janeiro, sede da monarquia desde 1808. Começou trabalhando como caixeiro. Em 1839 já havia construído fortuna. Atuava em Cabo Frio, “cuidando de seus interesses e do seu sogro João Moreira”. Foi quando fez uma petição ao chefe de polícia solicitando proteção: sentia-se ameaçado por ter que cobrar altas quantias a devedores. Sua presença em Cabo Frio, justamente no período em que o tráfico deslocou-se para lá, é sintomática. Desde que o tráfico de escravos para o Brasil se tornara ilegal, em 1831, com a “lei Feijó-Barbacena” – primeira proibição de entrada de escravos africanos nos portos brasileiros – cresciam os desembarques clandestinos na região.

Tornou-se negociante conhecido e poderoso. Possuía armazém na boca da Barra, próximo da Fortaleza São Matheus, fazenda na Bahia Formosa e chácara no Cercado da Restinga. Tinha ainda um considerável patrimônio em ações e era proprietário de uma chácara em São Cristóvão, na sede da Corte – o que lhe garantia bom trânsito entre as autoridades. Quando D. Pedro II esteve em Cabo Frio, em 1847, José Gonçalves emprestou dinheiro e cedeu móveis para a recepção, destacou empregados para ajudarem nos preparativos e emprestou o lancha Rival para o deslocamento do imperador.

José Gonçalves contava com excelente organização para realizar o tráfico clandestino – armazéns, trapiche e pontos de desembarque na Bahia Formosa e na Ponta das Emerências. Seu sócio era o comendador José Antonio dos Guimarães, que ocupou os cargos de juiz de paz e presidente da Câmara de Cabo Frio. Ambos eram proprietários de vasta extensão de terras, o que possibilitava o desembarque e o transporte dos africanos até o ponto de revenda sem maiores transtornos.

Em 1850, o governo imperial adotou uma política mais severa de combate ao tráfico de africanos e aprovou a chamada lei Eusébio de Queirós. Em 20 de janeiro do ano seguinte, uma força policial invadiu as terras de José Gonçalves. A operação teria sido determinada pelo próprio Eusébio de Queirós, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Justiça. As propriedades foram arrombadas, saqueadas e os bens confiscados pelo governo.

José Gonçalves escapou da prisão por pouco. Apresentaria duas versões para explicar o que aconteceu naqueles dias. Primeiro, afirmou ter saído de Cabo Frio em 11 de janeiro de 1851. O jornal Correio Mercantil, em “Movimento dos Portos”, de fato registra sua saída rumo à Corte no vapor Macaense. Em outra versão, afirma que estava em Cabo Frio e fugiu por terra até a Praia Grande, em Niterói, gastando para isso“grande soma”. Os dois depoimentos levam a crer que, graças à sua ligação com as autoridades, ele sabia que alguma coisa estava para acontecer. Saiu de Cabo Frio no Macaense, mas no dia 20 de janeiro estava de volta, escapando após a invasão policial e escondendo-se “em um sítio na Tijuca, estando por lá 3 anos” – estadia que teria custado 7 contos e 200 mil réis.

As buscas ao traficante continuaram. Um ano mais tarde, em 1852, sua chácara na rua Nova do Imperador, nº 17, foi cercada por força policial,“pondo em desespero minha mulher e filhos”, mas ele não foi encontrado. Quando se apresentou às autoridades, acompanhado de seu advogado e comitiva, foi preso, mas deu gratificação de 600 mil réis ao carcereiro para não ser colocado em “ferros”. Após ser absolvido no processo judicial, José Gonçalves intensificou sua campanha contra a “injustiça sofrida”. Afirmava que não traficara africanos após a lei de 1850. Concentrava suas acusações contra Eusébio de Queirós e seu antigo sócio José Antonio dos Guimarães, que teria ficado com parte de seus bens. “O Sr. Eusébio sabe que esse meu sócio sempre teve esse gênero de negócio (importação de africanos); e que foi a razão que o não fez responder a igual processo ao meu? Ele era meu sócio, e se eu traficava em negros, aquele Guimarães igualmente traficava, e se Guimarães não era criminoso por isso, também eu não, porque negociávamos ambos. Que moralidade! Que justiça! Que país! Contra mim havia provas e contra meu sócio não”, escreveu em 1863.

Passados 160 anos, seu nome ainda é bastante lembrado pelos descendentes de escravos nas atuais cidades de Cabo Frio e Armação dos Búzios. A Praia de José Gonçalves é conhecida como o local onde o traficante – que chegou criança e pobre ao Brasil para se tornar responsável pelo comércio e escravização de milhares de africanos –  explorou seu último ponto de desembarque ilegal.

Nilma Teixeira Accioli é diretora do documentário Ibiri, tua boca fala por nós (2009) e autora de José Gonçalves da Silva à Nação Brasileira: o tráfico ilegal de escravos no antigo Cabo Frio (FUNARJ/Imprensa Oficial, 2012).

Palavras à nação

“Nestas páginas encontrarão os leitores nacionais e estrangeiros tudo quanto se tem passado há 12 anos, nesta malfada perseguição, a cuja voracidade se entregaram os mais invioláveis princípios de direito e justiça, a propriedade, o futuro, e a vida de uma família brasileira, que tem esgotado todos os meios, e todos os recursos para alcançar justiça, encontrando só o escárnio e o ludíbrio aos mais sagrados direitos suplicados e mendigados por um cidadão brasileiro em nome da lei, em nome da constituição do Estado!
Peço ao povo brasileiro que repare em todos os documentos que aqui lhe ofereço, para que ao menos possam acautelar os seus direitos e propriedades da voragem desses vampiros, que, empolgando o poder, julgam que todos os meios são lícitos para chegarem a seus fins, a despeito mesmo do sagrado respeito que em todos os tempos tem merecido, e para todos os povos livres, o direito de propriedade e a inviolabilidade do cidadão.”

Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1862. José Gonçalves da Silva.

GOMES, Flávio. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
MATTOS, Hebe & RIOS, Ana. Memórias do Cativeiro – Trabalho, Identidade e Cidadania na Pós-Abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio: propostas e experiências no tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp/ Cecult, 2000.

1 Comentário Deixe um comentário

  1. TsukuriDeidara 23 de junho de 2021 Subscriber

    Mt bom trabalho, me ajudou mt em uma pesquisa

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